Apresentação

CAIXA Cultural
cinemas 1 e 2
av. Almirante Barroso
25 - Centro RJ

Curadoria

O “cinema de garagem” e seus campos éticos, estéticos e políticos

Marcelo Ikeda
Dellani Lima

Tudo começou muito antes, mas pode-se dizer que um primeiro ponto de partida foi o convite feito por Francesca Azzi para que Dellani Lima fizesse a curadoria de um programa dentro da Mostra Indie, em Belo Horizonte, em 2006. Esse programa foi carinhosamente chamado de Cinema de Garagem. Nele, Dellani reuniu um conjunto de vídeos que se destacavam por sua inventividade mas que ainda eram pouco vistos no cenário do circuito de festivais brasileiros.

A internet abriu muitas possibilidades para os jovens artistas do início do século: possibilidades criativas e de encontro. Foi examente a partir da “grande rede” que esse encontro entre nós foi possível. Encontramo-nos a primeira vez na Mostra Indie em 2008, mas já havíamos nos conhecido através dos emails e das trocas de filmes. À margem dos modismos, trabalhávamos – Ikeda no Rio de Janeiro e Dellani em Belo Horizonte – na realização e na curadoria, com diversos caminhos comuns. Sentíamos que ali surgia uma geração com uma postura diferente para o audiovisual, e que vários caminhos começavam a se abrir para essa cena. Somos bastante diferentes, mas essas diferenças pareciam que se alimentavam, e, de uma forma misteriosa, se complementavam. Ikeda costumava dizer que ele era o zen punk, e Dellani, o punk zen.

Em 2010, quando nos encontramos em Fortaleza – Dellani foi para lá ministrar um curso na Vila das Artes e se preparar para atuar no longa de Alexandre Veras –, surgiu a ideia de trabalharmos juntos. Alguns meses antes, Ikeda já havia mandado as fitas de sua primeira estada no Ceará, em Sabiaguaba, para Dellani montar, o que resultou no curta Sabi. Estimulado por Joacélio Batista, surgiu a ideia de prepararmos juntos, em regime de urgência, o livro Cinema de Garagem. Era um momento de efervescência da nova cena e sentíamos que era o momento certo de marcar, numa publicação, esse momento favorável. Estipulamos que a Mostra de Tiradentes, no início de 2011, seria o lugar e o momento ideais para o lançamento desse livro. Era preciso agir rápido, não havia muito tempo. O livro seria, então, uma compilação de textos e ideias que apontavam para o amadurecimento dessa cena em vários cantos do país.

Após o lançamento do livro, começamos a perceber melhor certas questões. Havia muitas lacunas no livro que, pela urgência de sua publicação, não puderam ser preenchidas, ou melhor aprofundadas. Sentíamos que o livro, certamente, era um ponto de partida, mas não se pretendia a “definir” a cena ou ser “conceitualmente preciso”. Era, como dizíamos, um “inventário afetivo”. Apostamos numa textura específica para o livro, para a composição das fotos, num certo formato gráfico, quase no formato de um zine, desenvolvido generosamente por Uirá dos Reis. Era uma publicação totalmente independente, “de garagem”, como o próprio espírito dos filmes que analisamos.

Aliás, esse termo “cinema de garagem” também gera bastante controvérsia. De um lado, com o termo “cinema”. Acreditamos que se faz cinema independentemente da bitola. São todos filmes, apesar de serem, quase todos, gravados ou finalizados em vídeo. Com os novos processos digitais, de hibridização dos formatos, acreditamos que a definição a partir das bitolas perdeu sua importância central. De outro, o termo “de garagem”. Com o termo, queremos apontar para outros modos de produção, para além do “cinema industrial”. Com a acessibilidade das novas tecnologias digitais, é possível, com uma câmera portátil e com um software de edição, fazer e montar filmes em nosssas próprias casas, nas nossas próprias garagens. Há um paralelo com a explosão do cenário da música independente, de que Dellani também faz parte, e suas “bandas de garagem”. Esse termo também problematiza as fronteiras entre o “amador” e o “profissional”, que cada vez mais estão borradas. Essas diferenças não estão tão propriamente marcadas no campo da técnica (a tecnologia está cada vez mais acessível) mas sobretudo por uma postura ética do artista, que volta sua produção essencialmente não para o mercado (para o reconhecimento artístico ou para a renda de bilheteria) mas sim para uma vocação de expressão mais propriamente pessoal. É claro que essas fronteiras muitas vezes também começam a se confundir, mas existe uma posição ética e política do artista que precisa, sempre, se mostrar clara. São as suas opções, na sua obra e na sua própria vida. Não estamos propriamente interessados no “psicodrama do autor” mas acreditamos que várias das opções de um autor não estão presentes somente nas suas obras mas na própria forma como ele vivencia essas opções. Suas opções de vida também podem ser um gesto político/ético diante do mundo.

As mudanças puderam ser vistas não apenas com a introdução do digital, mas nos modos de produção: formas colaborativas, com coletivos cinematográficos, com a formação de redes ligando artistas em diversos pontos do país. Mas com o termo “de garagem” não queremos apenas apontar para um modelo de produção, para o barateamento dos equipamentos de produção, e para as possibilidades de uma produção vista antes como “amadorística”. Queremos, também, falar de possibilidades estéticas, éticas e políticas que surgiram a partir dessas novas possibilidades. Uma outra forma de estar no mundo, de se conectar com o mundo a partir do audiovisual.

Por isso, muitas vezes é difícil delimitar com precisão as fronteiras que circunscrevem esse cinema – e nem estamos muito preocupados com isso. Não estamos interessados em inventar conceitos, normas ou rótulos. “Cinema de Garagem” é um rótulo, e os rótulos são problemáticos quando falamos em arte, assim como também o são outros rótulos como “novíssimo cinema brasileiro”, “nouvelle vague”, “neorrealismo italiano” ou “cinema novo”. O que buscamos é que, acima de tudo, este seja um “ponto de partida” para refletir sobre o estado das coisas no cinema brasileiro de hoje. Pensar o que aproxima e o que distancia certos filmes, certos realizadores, certos contextos. Pensar na possibilidade de efetuar recortes, sejam estéticos, geográficos, políticos. Interessa-nos mais em alimentar essa discussão do que em delimitar fronteiras. O “cinema de garagem” não é o “cinema de bordas” nem o “cinema trash” e nem se resume simplesmente ao filme barato ou sem incentivo público. Ao mesmo tempo, não somos ingênuos e nos lembramos de uma frase de Gustavo Dahl que citava um crítico marxista italiano que dizia “o primeiro argumento de um filme é o seu orçamento”. Os modos de fazer também são modos de ser. Os processos de produção nos falam de forma privilegiada de vários pressupostos estéticos e éticos da obra. No cinema contemporâneo, isso é vital. Mas há diversas intercessões com outros modos de fazer, com outros cinemas, com outras artes. Não é porque um filme foi contemplado num edital que se pode dizer de antemão que ele não possa ser “um filme de garagem”.

Da mesma forma, entendemos que essa é uma questão geracional. Mas em alguns casos é difícil estabelecer um recorte preciso, pois há autores de outras gerações “mais jovens que os jovens”, ou ainda, autores de outras gerações que dialogam com essa geração. De um lado, achamos que há autores que continuam produzindo no cinema de hoje e que possuem um diálogo fértil com essa produção, mas que achamos exagerado considerá-los como “de garagem”, como Andrea Tonacci, Luiz Rosemberg Filho e Edgard Navarro, por exemplo. De outro lado, outros autores estão mais ligados a um projeto estético ligado ao final dos anos noventa, quando uma geração se destacou por trabalhos inventivos, para além do cinema narrativo, como Eduardo Nunes, Camilo Cavancante, Cláudio Assis, Eryk Rocha, e alguns outros. No entanto, achamos que a lógica de produção desses filmes e suas preocupações estéticas e políticas se deslocam um pouco do grupo que aqui apresentamos, ainda que possuam nitidamente pontos de contato. Como exemplo de autores de outras gerações “tão jovens quanto os jovens”, podemos citar a inclusão de Paula Gaitán. Achamos que, ao longo dessa década, Gaitán realizou três longas-metragens memoráveis (Diário de Sintra, Vida e Agreste), em como expandem as fronteiras do "documentário de personalidades", num entremeio entre as artes visuais e o cinema. Longas baratos, realizados sem editais públicos, e numa linha estética muito contemporânea. Por isso, achamos que ela dialoga com essa geração tanto no sentido político, ético e estético. Assim como poderíamos ter incluído Ricardo Miranda e seu filme Djalioh. Se de um lado sentimos ser uma questão geracional, ela não pode ser meramente reduzida a uma questão de faixa etária. A questão central não é propriamente de idade, e sim de coragem. É a isso a que nos referimos quando pensamos em “filmes jovens”.

No ano passado, recebemos a feliz notícia da aprovação do projeto na Caixa Cultural para realizar uma mostra de filmes, complementada com um ciclo de debates e por esta publicação. Insistimos na ideia de não ser apenas uma mostra de filmes, mas que ela só poderia existir se complementada com debates presenciais e com textos variados sobre essa produção.

Se o início de 2011 mostrava-se o momento certo para o lançamento do livro, acreditamos que julho de 2012 é outro momento adequado para se realizar esta mostra. É chegado um momento que, mais do que “uma comemoração festiva”, é necessário uma espécie de balanço. Um balanço que faz uma espécie de retrospectiva dos principais autores e obras que compõem o “cinema de garagem brasileiro” mas que também coloca em pauta desafios e perspectivas para essa cena.

Para a mostra de filmes, tínhamos uma grade de programação que poderia abranger cerca de 25 longas e 40 curtas. Pensamos em organizar as sessões selecionando os principais autores do “cinema de garagem” ao longo dessa primeira década do século XXI. Apenas em alguns poucos casos (exceções) selecionamos obras de 2011 ou 2012. Tentamos também alcançar uma abrangência geográfica, cobrindo o maior número possível de estados. Na medida do possível, tentamos também exibir obras menos vistas, ou ainda, preferimos exibir os primeiros filmes desses diretores a exibir os mais consagrados. Dessa forma, preferimos exibir O Quadrado de Joana, do Tiago Mata Machado, a Os Residentes; Aboio, de Marília Rocha, a A Falta que me Faz; A Fuga da Mulher Gorila, de Bragança e Meliande, a A Alegria. A seleção de filmes procurou mesclar filmes consagrados, como Pacific, Estrada Para Ythaca e Avenida Brasília Formosa, com outros filmes menos conhecidos, como os de Gui Castor, Tavinho Teixeira e Gabriel Sanna, entre outros. Esse mesmo raciocínio foi utilizado para a sessão de curtas. Acreditamos que o curta-metragem foi um formato privilegiado para o “cinema de garagem” desta década. Diversos autores permanecem realizando trabalhos notáveis no curta, e cada vez mais há a consciência de que o curta não é meramente um caminho em direção ao longa-metragem, mas um formato com características peculiares. Prova disso é que diversos diretores permaneceram realizando curtas-metragens mesmo depois de terem dirigido seus primeiros longas. Para abrir espaço para mais realizadores, definimos que os autores que já participavam da Mostra com longas-metragens não teriam curtas exibidos. De outro lado, apostamos, sempre que possível, na produção coletiva ou colaborativa, com filmes como Estrada Para Ythaca, Estado de Sítio, ou o curta Eisenstein. Essas opções fizeram, pela restrição de mais espaço na grade de programação, que não conseguíssemos exibir os curtas assinados “solo” por esses diretores. Podemos citar, entre outros inúmeros exemplos, a ausência de curtas marcantes como Flash Happy Society (Guto Parente), Sabiaguaba (Irmãos Pretti), Muro (Tião), Décimo Segundo (Leo Lacca), Fantasmas (André Novais Oliveira), A Janela (ou Vesúvio) (João Toledo e Leo Amaral).

Sentimos que este livro é uma continuação do anterior “Cinema de Garagem”. Cada livro que escrevemos, cada mostra que realizamos é como se fosse um filme. Que filme é este? Uma mescla de filme-ensaio, filme-de-arquivo, “filme colaborativo”, ensaio visual, filme-diário, filme-carta. Um pouco de ficção e documentário. Um videoclipe. De um lado, documento; de outro, delírio. Um mapa; uma aposta; um gesto. Um filme-de-garagem.